Dilma Roussef será a primeira presidenta do Brasil.
A linha acima é vazia de todo o sentido da corrida eleitoral que presenciamos nos últimos meses. Livros inteiros serão publicados com as mais diversas análises das campanhas, dos partidos, da candidata eleita e da herança de Lula. Não apenas livros de história, como de marquetingue político, de sociologia, de humor, de estatística e de ciência política. Por que não também romances, contos, crônicas, poesia et cetera? Tudo o que aconteceu até este momento não pode ser resumido numa única linha. Todo reducionismo é cego, e dizer que Dilma é a primeira mulher presidente é o mesmo que afirmar que Lula foi o primeiro operário: belo, porém inexato.
A vitória da mulher Dilma Roussef não se sobrepõe à da técnica, à da competente, à da estudiosa, à da ex-prisioneira. É uma vitória de todas estas facetas e muitas mais. Facetas não só da candidata, mas também do povo que a elegeu. Na verdade, bem pelo contrário: todas as pesquisas indicavam que as mulheres preferiam Serra, tendência invertida apenas na última hora, com pequena vantagem para Dilma. Fato que nos leva a refletir sobre quem dissemina de fato o machismo em nosso país, tendo em vista que sempre foram as mulheres as encarregadas de ensinar aos homens seus valores desde o berço. Mas esse não é o tema do texto.
Cabe aqui, no calor do momento, analisar os acontecimentos que culminaram nesta vitória.
Apadrinhamento?
A candidatura de Dilma começou a se construir quando a mesma tornou-se ministra-chefe da Casa Civil e passou a controlar os principais programas do governo Lula, a exemplo do PAC e do Minha Casa Minha Vida. Contudo, muito antes disso Dilma já conquistava com sua competência a confiança do presidente, levando-o a escolhê-la para cargo tão importante. Logo depois do governo do apagão do PSDB, Lula nomeou-a ministra de Minas e Energia, cargo no qual Dilma coordenou o Luz pra Todos e foi presidenta do conselho de administração da Petrobras. Durante tal período, o Brasil alcançou a auto-suficiência em petróleo e a quase total universalização do serviço de energia elétrica.
Todavia, seus adversários tentaram mostrá-la como alguém sem experiência ou realizações. O fato é que ela é mais experiente do que Lula quando assumiu a presidência. Também se fala, mesmo entre seus apoiadores, que Dilma foi fabricada por Lula, e que será sua sombra apenas, e ainda que ela só foi escolhida por ausência de quadros no PT, que teria seus principais cabeças envolvidos em escândalos. A verdade é que Lula tinha à mão nomes como Agnelo Queiroz, Tarso Genro, Olívio Dutra, Marta Suplicy, Eduardo Suplicy, Aloísio Mercadante, Paulo Bernardo e muitos outros, inclusive a “nova cara” da política brasileira, Marina Silva, que era do PT até Lula decidir por Dilma.
Lula é com certeza o maior cabo eleitoral da história brasileira, ninguém pode negar. Entretanto, ninguém pode esquecer também que Dilma tinha apenas 4% de intenções do voto nas pesquisas em 2009. Daí para 56% dos votos no segundo turno foi uma longa caminhada que Roussef fez com as próprias pernas, tendo que vencer as constantes convocações para prestar esclarecimentos no Congresso, as infindáveis denúncias e calúnias da grande imprensa, os debates televisivos, uma agenda de campanha desgastante.
Um ponto a se destacar foram os debates. Dilma nunca participara de debates antes, e nunca treinara a oratória para os mesmos. Enquanto José Serra e Marina Silva apelavam para a emotividade do eleitor, com frases de efeito e caras e bocas de simpatia e inteligência, Dilma gaguejava e se apegava aos detalhes técnicos. Não se mostrando frágil como Marina, sua veemência era atacada pelos adversários como agressividade. O eleitor, contudo, via em suas palavras dados concretos, e a técnica que nunca fora candidata conseguia empatar ao debater com políticos profissionais, ou perder por pequena margem, o que foi dando mais confiança ao seu eleitorado, que finalmente viu que ela era de verdade, não uma invenção de Lula.
Ficou evidente que Lula, como estadista, não pensou apenas nas próximas eleições ao escolhê-la: pensou nas próximas gerações, enxergando nela a continuidade de um projeto de país.
O voto do nordeste
É evidente que o preconceito afloraria nessas eleições. E o maior preconceito foi contra os nordestinos, que tinham razão ao eleger Fernando Henrique, mas passaram a ser ignorantes esfomeados e preguiçosos ao apoiar Lula e Dilma.
Não importa que 25% dos benefícios do Bolsa Família sejam destinados ao Sudeste, o eleitorado de Serra continuava dizendo que os nordestinos só votavam por serem vagabundos interessados no assistencialismo do governo.
Como nunca conheceram a região, não fizeram questão de conhecê-la agora. O nordeste cresceu à média de 5,64% ao ano nos sete do governo Lula, acima dos 5,2% da média nacional no mesmo período. Não se cresce assim sem trabalho. Uma região de vagabundos ficaria estagnada. O incentivo à agricultura familiar e as obras do PAC mudaram muito a realidade de um povo antes sem perspectiva. O novo nordeste conseguiu livrar-se de velhos coronéis como Tasso Jereissati e Marco Maciel, que assistiu de camarote o governo de Pernambuco ir à falência enquanto foi vice-presidente da República por oito anos.
E, o mais incrível, exatamente o nordeste, a região mais medieval do Brasil, aquela que mais sofrera com o descaso dos governos passados que defasavam a educação e freavam nosso desenvolvimento, deu um salto de envolvimento cívico e independência eleitoral, não se deixando levar pela boataria medievalista da campanha serrista.
Campanha medieval nos moldes republicanos
O voto em José Serra não trazia em si uma justificativa. Ao menos essa era a percepção que se tinha quando seus eleitores apareciam na internete ou na mídia impressa para defendê-lo. Enquanto os defensores de Roussef apresentavam planilhas, estatísticas, resultados comparados dos governos dos dois partidos postulantes, sempre que instados a expressarem seu apoio ao candidato, os serristas expressavam apenas seu repúdio a Dilma, Lula e PT. Surgiam sempre com o mesmo discurso de “fora PTralhada”, “chega desse apedeuta projeto de ditador” e coisas do tipo. Tal clima de preconceito foi adotado pela campanha oficial do PSDB, embora não arriscassem tocar na figura de Lula, que até apareceu nos primeiros programas eleitorais de Serra.
Se Marina soube captar tudo de positivo da campanha de Obama para a presidência dos Estados Unidos da América, a coligação DEM/PSDB aplicou tudo que viu na campanha de John McCain. Começaram por trazer temas religiosos para o debate político, despolitizando a campanha, esvaziando o discurso propositivo, apelando para um casamento entre estado e igreja nocivo em todos os países em que foi utilizado. Ao invés de discutirmos a infra-estrutura, a educação, o incentivo à ciência e tecnologia, passamos a tratar de temas medievais, capitaneados pelos setores do DEM que conseguiram infiltrar-se no PSDB, antigo partido progressista transformado em palanque do retrocesso, em representante de organizações de extrema direita como TFP e Opus Dei. Basta ver que uma das expressões mais procuradas no google era “Dilma aborto”.
Vídeos sensacionalistas associando a ex-ministra a fetos mortos, retuitados à exaustão pelos seguidores de Serra, conseguiram levar parte do eleitorado de Dilma para Marina, e a disputa eleitoral ao segundo turno.
O tema do aborto também nos mostra que o maciço do eleitorado de Marina não está tão preocupado com uma “cara nova”: 52% dos marineiros assíduos na internete voltaram a participar ativamente na campanha do segundo turno, sendo desses 12% favoráveis a Serra, 12% favoráveis e Dilma e 42% contra a Dilma, disseminando os vídeos que a associavam ao aborto, ou seja, uma grande maioria advinda do neopentecostalismo, corrente religiosa que gostaria de um governo nos moldes do Talebã.
Se Hugo Chávez aparecesse recomendando o voto em Dilma, a grande mídia criticaria sua intromissão no processo eleitoral brasileiro. Contudo, o que se viu foi a presença de um chefe de Estado estrangeiro, Joseph Ratzinger, entrar na campanha contra Dilma na semana decisiva, depois de um segundo turno em que se viu tudo de mais baixo que a campanha republicana pode produzir. Depois do apelo à religião, passou-se ao aterrorizamento da população e a mentiras absurdas.
Assim como o ódio a homossexuais foi usado contra Obama, o foi contra Dilma, numa campanha contra o casamento homossexual, ódio esse que foi ainda mais incentivado com a afirmação de que a candidata seria homossexual. Em seguida, assim como Obama foi transformado em estrangeiro de origem muçulmana e terrorista, circularam emeios afirmando que Dilma ela búlgara e agente comunista infiltrada, e não poderia assumir a presidência do Brasil.
Mas a campanha oficial também tem divergências com a campanha subterrânea. Enquanto esta coopta pessoas de extrema direita com o discurso de que Dilma era terrorista e matara agentes públicos durante a ditadura, aquela afirmava que Serra se destacara na luta contra a ditadura, enquanto “Dilma, ninguém sabe, ninguém viu.”
A campanha oficial tinha divergência inclusive consigo mesma. No mesmo programa Serra afirmava que havia muitos ministérios e era necessário reduzir o gasto público, para em seguida prometer criar o Ministério da Segurança Pública. Poucos minutos após prometer 13º para o Bolsa Família, aumento de 10% para aposentados e salário mínimo de R$ 600, afirmava que cortaria gastos e investiria apenas em infra-estrutura.
Também alastraram-se textos dizendo que Dilma era considerada terrorista e proibida de entrar em vários países, inclusive Estados Unidos, e seria presa se pisasse em solo estadunidense.
Gráficas de pessoas filiadas ao PSDB imprimiam milhares de panfletos contra Dilma a pedido de dioceses católicas paulistas, pagos com o dinheiro das doações de fiéis.
Enquanto tudo isso ocorria, Serra tentava maniqueizar ainda mais o pleito, com o jingle “Serra é do bem”, que pretendia passar a mensagem que “Dilma é do mal”. A partir daí o trocadilho “Serra é do DEM” passou a fazer pleno sentido.
Ao fim e ao cabo, assim como Lula conseguiu vencer o medo desperto por Veja, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e Globo, Dilma conseguiu vencê-los agora, assim como a Silas Malafaia e ao Papa. Aliás, a mídia intensificou sua forma canhestra de ver as coisas. Quando descobriu-se que o dossiê contra Serra e familiares fora feito a pedido de Aécio Neves, deixou de ser crime, e o crime passou a ser o fato de um deputado petista ter conseguido acesso a tais informações. Erenice continuava surgindo diuturnamente, enquanto a fraude nas licitações do metrô de São Paulo, num total de R$ 4 bilhões em recursos, foi jogada para a agenda jornalística pós-eleição.
O lamentável episódio da bola de papel, o péssimo teatro de Serra, foi potencializado por uma tosca montagem da Globo que tentava comprovar uma agressão não havida. O depoimento sem graça de um médico que fora secretário de saúde de César Maia ultrapassou o ridículo. Simplesmente conseguiram entrar para o anedotário político brasileiro.
Enquanto antigos nazistas, organizações obscuras e pastores interessados na promiscuidade do estado com a igreja pulavam no palanque de Serra, no de Dilma abundavam reitores e professores universitários, intelectuais e cientistas.
O auge da campanha de atemorização da população veio com um vídeo lançado nos últimos dias, com o título “Dilma 2012 – o fim está próximo”, no qual fazia-se previsões catastróficas para o provável governo da petista. Interessante que, ao afirmar que Dilma perseguiria estudantes e trabalhadores com a polícia, o editor do vídeo colocou fotos de truculência policial contra manifestantes ocorrida em governos de aliados de Serra ou do próprio quando governador de São Paulo.
Novo balanço de forças
A vitória de Dilma torna-se tão ou mais emblemática do que a de Lula, pois, além de uma vitória partidária, representa uma reviravolta no sistema de poder brasileiro. Alterou-se o balanço de forças em todos os setores. A Globo, que antes amargara apenas derrotas políticas, agora perde também credibilidade, que vem se refletindo na queda de audiência. Fato semelhante acontece com Veja, que perde espaço para IstoÉ e Carta Capital. As demais regiões do país tornam-se atoras mais influentes, com o direito de alavancar investimentos e crescimento ao lado do Sudeste. Inúmeros pastores também saíram com a credibilidade arranhada, e o próprio Papa alavancou o processo de redução do número de católicos no país.
As palavras de Lula, ao afirmar que “Serra sai menor da disputa”, é exata: Serra entrou na disputa com o tamanho do PSDB, como legítimo representante desse grande partido, e sai do tamanho do DEM, que, mesmo tendo mudado de nome para passar-se por partido novo, tem sofrido o encolhimento devido a uma oposição sem projeto, escandalosa e virulenta. Serra jogou fora toda a sua história e aproximou-se do discurso de seu candidato a vice, Índio da Costa. Para que o PSDB continuasse grande, a derrota de Serra era necessária. Apenas assim esse partido poderia recuperar sua identidade própria, que sempre fora distinta do PFL.
Uma mulher alcança o mais alto posto da Nação, num recado claro de progresso e igualdade, de que o fim do patriarcalismo se aproxima, e que a discussão dos direitos humanos, mesmo com a concessões que a candidata realizou durante a campanha, deverá ser retomada pela sociedade brasileira de forma racional.
Por tudo isso, é linda uma vitória da democracia brasileira, do progresso contra o retrocesso, do futuro contra o passado, da razão contra o ódio.
Talvez estejamos finalmente saindo da Idade das Trevas, caminhando com confiança e sabedoria para um novo Século das Luzes.
Amâncio Siqueira
Confira a matéria que foi destaque na edição de Outubro do Jornal o Movimento /// Depois da vitória da esperança sobre o medo, a razão derrota o ódio
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
Por Wallysson Ricardo às 16:16
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